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NÃO ACORDES O DRAGÃO

Existe uma relação dualista entre corpo e alma, e consequentemente a existência enquanto colectividade que nos conduz à reflexão de Goethe sobre o “principio da vida, que contém as possibilidades de, dos simples começos dos fenómenos, ascender à infinita e diversa multiplicidade”. É através de um “berço”, como símbolo de recolhimento do ser humano em que as emoções se debatem entre o estado de exibição e/ou de omissão, que Mónica nos posiciona no início desta série, “NÃO ACORDES O DRAGÃO”.

“A chama purificada, purificante, clareia o sonhador duas vezes: pelos olhos e pela alma”.
Gaston Bachelard

Mercedes Cerón

NÃO ACORDES O DRAGÃO… QUE SONHA

MARIA MIGUEL LUCAS

Já nem me lembro como aqui vim parar. Foi num dia em que nadava as minhas voltas na
luminosidade que azulava o mar, cirandando entre o cintilar do sol e os reflexos de sal que
refrescavam o mergulho no sombrear velado dos fundos. Sei que, entre movimentos de
cauda e ondulações de corpo, vim para cá num vogar distraído de subidas à luz do ar e
descidas à escuridão difusa do abismo. Creio que achei que vinha para onde queria ir,
embora não soubesse onde me dirigia ou se ia a algum lugar. Até o mar me seguiu, tão
divertido estava ele também… ou me empurrou talvez, inadvertido na sua diversão.
Lembro-me de sentir que as águas que me instigavam se faziam menos frescas, menos
fundas, menos luminosas. Mas fui subindo pela maré, rodeada de praias e arribas. Ao longe,
pequenas e curiosas gentes, pareciam aguentar-se todo o tempo fora de água. Deixei-me
boiar, curiosa de os ver curiosos comigo, até que me vi presa nas magras águas que, ainda
assim, insistiam em me carregar de novo para o Oceano!… Mas as baleias são grandes e
pesadas. Precisam de amplas alturas, larguras e profundidades. Não o sabia eu já? Aflita,
restou-me o caminho escavado pelas próprias lágrimas e aqui me escondi, envergonhada da
minha fantasia, culpada pela minha desatenção…
É verdade que aquelas pequenas pessoas me acolheram, edificaram espaços e nunca
deixaram de trazer comida. Parecem gostar de mim e acompanham a minha solidão com
sons que embriagam o líquido subterrâneo que me contém … ainda assim, por vezes, não
consigo evitar rancores que me fazem rumar de encontro às paredes em meu redor. E foi ao
ver como nelas se abrem pequenas fendas como búzios, rachas cada vez mais fundas e
progressivamente mais rasgadas … que se me iluminou a alma com cores de poente que já
me não lembrava de recordar! Voltei a sonhar com as paisagens e seres marinhos que antes
me pareciam já demasiado vistos. E, entre brilhos azuis e luminescências enrubescidas de
esperança, tornei a entoar canções de ninar o mar. E como todas as baleias desejosas do
fogo vital, preparei-me para ser dragão.

Ninguém tinha a coragem de me galgar os domínios, mesmo não os sabendo meus ou quem
eu era. O sítio era inóspito, rochoso e cercado por falésias abruptas protegidas pela cratera
de um antigo vulcão que, abafado pelo oceano, na escala de tempo da Terra, ronronava de
quando em vez. Ainda assim, os homens, na sua mania de controlar o tempo, tinham posto
a circular histórias, de como o fogo da montanha tinha adormecido de cansado e mitos, de
como existia um dragão que aprisionara a nascente que antes corria. Era verdade. Fui eu.
Estava farto de cuspir fogo e cinzas. E, como todos os velhos dragões, preparei-me para a
serenidade aquosa das baleias.
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As minhas escamas iam ficando cada vez mais rugosas e alvoreciam, impedindo-me os
movimentos. Quase litificados, os meus membros entorpecidos deixaram de consumir
energia. Tinha moldado o meu ninho na rocha, lá onde, vagarosamente, se acolheriam as
águas doces que me levariam ao oceano. E, como haveria ainda de ali ver pousar muitos
sóis, fui enfeitando o berço com reflexos sulfúreos, que faziam cintilar as noites e coloriam a
luz dos dias. Era belo!
Mas o fogo demora a acalmar-se em água. Mesmo na escala do Universo, leva um tempo
longo, todos os dias respirado na estrela que se põe no horizonte. Concentrei-me no pulsar
do oceano que ecoava no sopé da arriba. E assim vivi feliz, perto do céu, a almejar o dia da
minha transmutação e a admirar as aves que, recortadas na luz, entre a terra e o mar,
decoravam o firmamento.

A minha avó contava que naquela cisterna tinha vivido uma baleia. De facto, com algum
esforço, podia-se sentir ali uma atmosfera de aquário. A meia altura, nas paredes, até havia
mesmo aquela mancha esbranquiçada de argila, com forma de cachalote. Sorri ao imaginar
a cena.
– Como é possível, avó? Como se alimentava? – As pessoas traziam-lhe comida, agradecidas.
Porque foi a baleia que começou por escavar este sítio fundo na rocha e o encheu de água.
Estava a gostar da história e mostrei o meu interesse: – Mas as baleias andam no mar, avó.
Como poderia ter aqui chegado? – Diz-se que veio do mar, numa noite de lua-cheia, com
uma maré muito viva que entrou pelo antigo ribeiro. Fugia e chorava muito, à procura de
um lugar para se esconder.
– Mas as baleias são grandes, avó. Como poderia ter aqui vivido? – Por isso mesmo, era tão
grande que não conseguiu sair, coitada. Depois as pessoas fizeram esta cisterna para ser a
casa dela e para conter as águas na profundidade necessária, porque o dragão do alto da
arriba zangou-se e estancou a nascente do ribeiro.
A coisa melhorava, portanto. Ri-me: – Um dragão, avó?! Mas existe o rio que corre agora
para o mar, nem sequer é um ribeiro! – Foi quando o dragão morreu, que voltou a correr
água da nascente com tanta força que transbordou o leito do antigo ribeiro. E foi quando a
baleia pode voltar ao mar.
O meu espanto aumentava à medida da minha incredulidade: – E então como pôde a baleia
soltar-se da cisterna? Voou como um dragão, avó?! – Uns dizem que sim. Outros que foi
destruindo a cisterna com encontrões e movimentos de cauda, por estar zangada e só,
porque a igreja que existiu em cima da cisterna foi abandonada e já não havia cânticos, nem
pessoas. Também há quem diga que comunicava com as águas pelas fendas das paredes e
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lhes pediu que a viessem buscar. E que foi isso que fez com que a nascente voltasse a correr
pelo leito do antigo ribeiro, só para a levar de volta ao mar. Ainda há quem diga que falava
com o dragão através das aves… sabe-se lá…
Era realmente grandiosa aquela cisterna. Compreendia-se que tivesse dado origem a tantas
histórias, uma vez que estava situada no sopé da encosta, próximo do rio que, ali muito
perto, ia desaguar ao oceano, numa baía ampla de areias estuarinas, cercada de escarpadas
arribas feitas de uma rocha texturada e escura. Seria verdade que a ruína indefinida do
edifício que a encimava fora uma igreja? Sorri com a lembrança. Mas não desarmei: –
Dragões, baleias, o que podem ter uns a ver com os outros… As coisas que as pessoas vão
buscar, já viu?! – Sabes, meu filho, tudo tem a ver com tudo: nós, os animais e plantas da
terra e da água, habitamos o mesmo planeta e respiramos o mesmo ar. Não seriamos nada
sem o fogo vital que nos une e até sem a morte que nos recicla …
A minha avó era assim. Depois de dizer as coisas delas, saía-se com uma destas verdades
universais e irrefutáveis. Fixei o olhar as manchas de pássaros que se desenhavam no céu,
como peixes num aquário, emolduradas pelo contraste luminoso do poente. E não consegui
dizer mais nada.