Our Location
304 North Cardinal St.
Dorchester Center, MA 02124
Sonho de Vôo I, 2018
Tinta acrílica s/ papel Fabriano, 10 x 15 cm (cada)
Sonho de Vôo II, 2018
Tinta acrílica s/ papel Fabriano, 10 x 15 cm (cada)
Sonho de Vôo III, 2018
Tinta acrílica s/ papel Fabriano, 10 x 15 cm (cada)
A miniatura é uma das moradas da grandeza, 2018
Colagem, tinta acrílica e materiais riscadores s/ papel passepartout, 42 x 30 cm (cada)
Elementos I, 2018
Tinta acrílica e colagem s/ tela, 148 x 100 cm (cada)
Elementos II, 2018
Colagem e tinta acrílica s/ madeira, 70 x 50 cm (cada)
Sobre o vôo, e o vôo na obra
Pensemos, antes de mais, no vôo como o movimento que eleva e nos tira os pés do chão. A impossibilidade do vôo é talvez um dos motivos de maior inquietação para os homens, um dos desejos mais primitivos e mais distantes da condição de se ser humano. Não foi o homem, de modo nenhum, concebido para voar. Contudo, a ideia de aproximação a uma tal esfera (bem acima da terra) parece inebriar-nos com sentimentos de leveza e de liberdade; e esses são, possivelmente, os sentimentos que mais procuramos estabelecer em nós de um modo estável, mais ou menos permanente. A condição humana sujeita-nos a um lugar de relação com a vida e com o mundo ao nível do chão e apenas a posição vertical nos deixa, de certo modo, lidar com o ar, mas a uma altura que não perspetiva o todo, que apenas se mistura com ele.
O desejo do vôo está certamente relacionado com a impressão de aprisionamento causada por essa forma de vida a que estamos sujeitos. Porque naturalmente procuramos algo fora da vida – mesmo que nada possamos encontrar para além da vida -, mas que a sustente, no sentido de uma harmonia e do apaziguamento. O mais interessante é que, não sendo essa condição verdadeiramente ultrapassável, em termos físicos, a elevação possa trabalhar-se ao nível da consciência. Podemos pensar simbolicamente numa elevação que nos tira do chão, para que a ele voltemos, depois, livres do que antes nos toldava a visão e nos empurrava para o mundo denso das coisas e dos acontecimentos, sem nenhuma saída.
Saber voar deve então prender-se, sobretudo, com a capacidade de elevar o pensamento até aos valores mais leves, procurando uma visão mais aberta que dilua as fronteiras do conhecido, para alcançar um espaço maior, onde mesmo os movimentos do corpo parecem libertar-se das forças que nos determinam a postura, o ritmo, etc. Isto é talvez o que mais interessa à pintura. E também a nós, outros homens, observadores e que a partir do trabalho da artista, podemos – reconhecendo o movimento que ela procura e nos oferece – usar a sua pesquisa a favor o nosso próprio ensaio (para o vôo). É um ponto de partida como qualquer outro.
Nesta exposição é isto o que, acima de tudo, se nos oferece: “O Ensaio do Vôo”, que o título explicita. Só que, sendo este um exercício plástico e estético, ele compõem-se de camadas e de soluções que exibem o vôo muito para além da sua forma última. As obras que a Mónica Mindelis (São Paulo, 1978) apresenta constituem uma fase do seu corpo de trabalho que se dedica em absoluto a este tema do vôo, mais concretamente, ao Sonho de Vôo , introduzido por Gaston Bachelard (autor que, aliás, alimenta grande parte da obra da artista). Elas não são, por assim dizer, parte de uma pesquisa isolada, mas de um movimento de investigação dinâmico e continuado, ditado pelo fazer plástico, com recurso aos suportes e aos materiais que essa atenção, em si, foi e vai requisitando. Por isso, nos deparamos com uma variedade significativa de formas e de dimensões e de expressões, organizadas, elas mesmas, de modo a que a nossa atenção, enquanto visitantes e observadores, seja orientada sob um movimento que eleva o olhar, e depois o baixa, elevando-o de novo, ou surpreendendo-nos com aparições mais enigmáticas (embora suaves, como se verá). Poderíamos, no fundo, dizer que a exposição serve a amplificação da experiência que cada obra ofereceria isoladamente e ajuda-nos no reconhecimento desse caminho e dessa pesquisa como um todo. Pensemos, por isso, adequadamente, a exposição como um todo. Não necessariamente como um percurso fechado, mas como um todo que pode ser percorrido de várias maneiras, sem que se percam essas determinações fundamentais sobre o olhar.
Lembrando que esta se trata de uma exposição de pintura, e que, como se disse atrás, da pesquisa do vôo através da elaboração plástica e estética, consideremos mais de perto a materialidade. Pensemos nos termos das camadas e das formas e da escala e das cores e dos gestos: dos elementos das obras, e do esforço do processo. Das “Caixas de Respiração” e “Santuários”, mais densos, como que acumulando a catarse emocional, um despir de tudo o que pesa, colocados no chão, embora a diferentes alturas, aos desenhos “A Miniatura é uma das Moradas da Grandeza” que as acompanham, que lhes sucedem imediatamente, por sua vez, mais leves, onde as camadas em massa contrastam com o vazio e abrem a leitura (e elevam o olhar), para depois explodirem em “Água e Ar” e “Terra e Fogo” que reconfiguram uma forma que se desprende quase em absoluto do suporte que as carrega, em tons de azul e de perigo!; para depois voltar, numa outra tentativa, a desenhar-se sobre a mesa, procurando uma forma, de novo, em outra escala e outro suporte, mais controlada, ultrapassando as exigências do azul e experimentando outras intensidades no gesto, outros movimentos para essa mesma forma que naturalmente escapa e se altera (“Elementos”)…para então regressar à expansão da interioridade que se revela em “Norte”. Nesta peça, em particular, o ensaio ou o esforço em torno do vôo é tanto mais curioso quanto mais se conheça a obra da artista. Este, mais do que qualquer outro nesta exposição, espelha uma tentativa de elevação que é antiga e que trata das emoções mais privadas, mais internas e mais elementares a si e ao seu trabalho. É, nestes termos, uma peça mais visceral, onde a forma do vôo é dada pelo desprendimento da forma do corpo que experimenta a emotividade a partir de atenção cuidadosa e absolutamente interessada, e comprometida; assim contrastando, subtilmente, com as pequenas pinturas-objeto (“Se no Céu as Imagens são Pobres, os Movimentos são Livres”) que ali encontramos e com que nos deparamos ao longo de toda exposição. Essas, por seu lado, afiguram-se como elementos do essencial, quase absolutamente desprendidos da terra.
Já no piso inferior, por fim, a instalação re-intensifica o sonho (sobre o vôo). Se, por um lado, no piso superior, nos sentimos testemunhas de um esforço que parece dirigir-se mais e mais para a elaboração do vôo – para um tal desprendimento -, na cave, somos forçados a uma distância que surpreende e que nos coloca imediatamente diante de várias questões. Entre elas a dificuldade de, enquanto observadores, vermos de perto os desenhos e as pinturas. O que poderá aparecer-nos, por assim dizer, como um contrassenso, estando nós numa exposição de pintura. De facto, a única semelhança expositiva com o piso de cima é a dualidade elementar do vôo, que a travessa: chão e céu. Mas, apesar disso, aqui as peças parecem (a)fundar-se na terra, criando a impressão de que a conquista do vôo não pode ser algo senão a exploração da tentativa, mas elevando o esforço, e continuando-o. Talvez seja mais isso o que aqui nos é dado, em baixo. Mais do que mostrar-se o trabalho pictórico (“Sonho de Vôo I e II” e “O Ser que Sobe Vê Apagarem-se os Contornos do Abismo”) que, ainda assim, se pode ver, a artista criou uma tensão entre o sonho, a expectativa e a efetivação.
Porque se essa efetivação não acontece do modo esperado, ela permanecerá para sempre na obra, dentro dela e fora dela, na consciência da autora e na experiência de quem vê. A não efetivação do vôo alimentará sempre o trabalho, até que se transforme, através dele, pela mão da Mónica, na apresentação de outras pesquisas e de outros movimentos de compreensão da vida como a expressão de uma relação.
Maria Joana Vilela